O Perninhas

 

Fui contactada por uma alemã imponente, que me pediu para visitar o seu namorado, um amável  recluso africano, com 1.95 metros de altura, preso por tentativa de homicídio qualificado. E lá vou eu, toda entusiasmada para o EP, adoro histórias de faca e alguidar (especialmente sem falecimentos pelo meio).

 
Nessa 1.ª visita, fiquei assoberbada de emoções. NUNCA TIVE ninguém que me matraqueasse TANTAS PALAVRAS, e contando-me TÃO POUCO em TANTO TEMPO. Eu estava num frangalho emocional sem precedentes.
 
Quando finalmente ele chega ao FACTO ILÍCITO propriamente dito…eu
já tinha desligado há que tempos. Regra geral desligo em, aproximadamente, 20 minutos, e eu já estava ali há mais de 1 hora e meia. A parte boa é que realmente eu tenho uma capacidade excepcional de fingir que estou a ouvir pessoas. É um dom, confesso.
 
Eis quando ele PÁRA de contar (o quer que seja que ele tinha dito), e eu farejo silêncio. Ele olha para mim, ávido de uma resposta que o aquiete enquanto alegado homicida.
 
Estou numa situação delicada, perdi-me há, pelo menos, 30 minutos atrás. E quando digo perdi-me, não minto. Não fazia porra de ideia do que ele me estava a perguntar, se é que era uma pergunta. Até poderia ser uma ameaça, por Deus…sou tão incauta que até me irrito a mim própria. E ele continuava a olhar para mim, calado.
 
Eis que ele, inopinadamente, salva-me.
E apavora-me, também.
 
Chega a cadeira para junto de mim (MEDO!) e com uma rapidez alucinante, nem tive tempo de perceber ao que ia, ele iça uma perna gigante rasando o meu nariz, arregaça as calças e exibe-me, triunfante… uma GRANDESSÍSSIMA PERNA DE PAU!

E quando digo grande…não se olvide que ele tem praticamente 2
metros. Cada mão dele, é uma nalga minha. Digamos que o meu deficit de atenção eclipsou-se no imediato e nunca estive tão atenta na vida.
 
Penso que mostrar-me a perna de pau foi, concomitantemente, um acto de exibicionismo e de contextualização criminosa. Ficou extremamente claro que aquela condição era algo que não lhe causava qualquer constrangimento, mas sim um certo orgulho. Deixou-me até tirar e publicar uma fotografia.


Fiquei a pensar que um gesto vale por mil palavras,  e f…, aquele homem esteve ali a entendiar-me com banalidades deprimentes, quando afinal tinha um apontamento colossal debaixo das calças (boçalmente falando, até acredito que seriam dois).
 
E recomeça a falar, volta a desfiar o seu rol de queixas, e aí sim, eu entro em modo de sobrevivência, activo todos os meus neurónios memoriais, e apanho o que se segue:
 
 foi uma luta entre primos;
– motivo: honra e mais não sei quê,  ainda hoje não estou totalmente esclarecida, isto dos africanos e da sua honorabilidade é uma questão sociológica interessante;
– com caçadeira;
– tiro no tórax;
– INEM salvou o primo;
– foi só para o assustar (ok. bem-sucedido).
 
And last but not least:
 
O tiro disparado foi unicamente para se defender, porque o primo irritou-se com não sei o quê,  e ele é MUITO PERNETA e o outro primo é MUITO LESTO e corre que nem um gato-bravo e ele ficou com medo! (obrigo-me a não rir).

Palavra de honra: EU ACREDITO MESMO que esta pessoa não teve intenção de matar. E quem conhece a minha adorável personalidade distorcida: quando eu acredito, ACREDITO MESMO. E a Verdade, é a MINHA VERDADE. E quero obrigar os outros a também acreditarem, nem que seja ao chapadão, o que em tribunal me frustra imenso, como imaginam, nunca sei o que fazer à minha visceralidade incontida.

Naquele julgamento, transfigurei-me numa gorila enjaulada (elegantemente vestida). Entra a vítima (“vítima o car… “pensei eu – “filho da p…, queixinhas de merda, vai-te encher de moscas”), e preparo-me para o trucidar, fico doente com pessoas dissimuladas.

 
O Sr.Vítima/Falso de Merda entra, vai para o lugar que lhe indicam, olha para trás para o banco dos réus, vira-se, corre em direcção ao arguido e TUNGAS! ESPETA UM GRANDE ABRAÇO NO PERNINHAS!!!E o ambiente é mágico, ambos carinhosamente estreitados, submersos na sua própria realidade espacio-temporal (até que  os guardas prisionais se atiram para cima dos dois, pensando que se estão novamente a tentar matar).  

Odeio dar parte de fraca, mas aquilo foi muito comovente. Mas lá se foi toda
a minha estratégia processual. O Sr. Vítima/Falso de Merda é, afinal, uma jóia de pessoa, e eu não tenho como atacar pessoas vulneráveis. Tratei-o na palminha das mãos, perguntando à generosa vítima se havia perdoado o ofensor e ele chora e diz que sim, que ele próprio também teve muita culpa!
 
À saída abraçam-se outra vez, os guardas já a passarem-se dos carretos com tanta ternura e movimentos bruscos.
 
No dia da leitura, o Perneta é sentenciado a 5 anos de prisão, suspensa na sua execução e sujeita um regime de prova – coisa simples a tratar com técnicas de reinserção social, unicamente 2 vezes por ano. É imediatamente libertado.
 
Ele dá-me um grande abraço que quase me estropia, e notem que eu tenho arcaboiço (o homem por não ter uma perna deve dar montes de importância aos membros superiores: ora mune-se de armas e dá tiros, ora abraça-as vigorosamente. Homem interessante… deve ser uma roleta russa de emoções ser-se amiga dele).
 
Como saiu em liberdade, combinei com o guarda prisional ir levá-lo ao EP no meu carro, para ele ir buscar os seus pertences (e ver se lambia mais qualquer coisinha…nem que fosse o almocinho). O Pernas pede para ir à casa de banho. O senhor guarda fica ali comigo no corredor, à espera do mandado de libertação.
 
E lá vai o arguido à casa de banho dos homens, no piso 2 do grandioso tribunal de Almada (vai aos saltinhos meio coxos – relembremos que aquilo não é propriamente uma prótese de fibra de carbono).
 
 O homem demora. Mau…concedemos que ele só tem uma perna e como bom africano de 2 metros deve ter um pichão enorme e super trabalhoso. Mas já estava a demorar demais…. Espreitamos para dentro de um outro corredor onde estão as casas de banho e as salas de testemunhas e vimos o
arguido a regressar.
 
E aí, eu e o guarda quase que rebentamos de riso. Atrás dele: a sinalética da casa de banho dos homens – era, nada mais nada menos, que uma figura masculina, SEM UMA PERNA!

A sério, nesse dia Deus estava super bem disposto: agraciou-me com um cliente correctíssimo, com um colectivo de juízes e MP sensatos, com uma condenação perfeitamente justa e fez-me rir tanto à porta da casa de banho de homens –  lugar o qual, por princípio e por definição, eu odeio, tenho nojo e DÁ-ME VÓMITOS!
 
Cereja no topo do bolo:
 
O Pernas FALTOU A TODAS as entrevistas da Reinserção Social. Falhou o regime de prova e revogaram-lhe a pena suspensa, tornando-se efectiva. Está neste momento a bater com os COSTADOS E A SUA ÚNICA PERNA num EP da zona Centro.
 
Tive vontade de o estoirar  mas, como sabem, estou no limiar da delinquência mas ainda do lado de cá. Continuámos amigos.

 

 

 

 

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5 comentários em “O Perninhas

  1. 🙂 Será que boleia deu para almoço?
    (só comecei o estágio e não tive casos assim, só o do jovem com excesso de velocidade a quem perguntei se havia uma razão para ele ir com velocidade e respondeu que estava a experimentar o carro)

  2. Redonda, não deu para o almoço. E experimentar um carro a grande velocidade…devia ser um Confrontador como eu. Mas um pouco mais burro. Por que não terminaste o estagio??

  3. você não lembra do genocidio do Wiriyamu, Mocambique 1972 em tempos modernos?
    e todos os outros genocídios portugueses na África ???

    Portugal são ladrões que, ao longo da nossa história, roubam Africanos, Asiáticos e Brasileiros. Agora que não podem mais fazer isso, roubaram essas ilhas, que foi a última do que podiam roubar da Espanha na década de 1930. Patético!

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